sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Como a agricultura quase destruiu a civilização humana antiga (How Farming Almost Destroyed Ancient Human Civilization) - por Annalee Newitz


Há cerca de 9.000 anos, os humanos haviam dominado a agricultura até o ponto onde a comida era abundante. Populações cresceram e as pessoas começaram a se fixar em grandes assentamentos com milhares de habitantes. E então, abruptamente, essas protocidades foram abandonadas por milênios. É um dos maiores mistérios dos primórdios da civilização humana.
O alvorecer da era da agricultura ocorre durante o "Neolítico", o período final da Idade da Pedra. Naquela época, há cerca de 12 mil anos, as pessoas já tinham desenvolvido ferramentas de pedra incrivelmente sofisticadas, armas e vasos de argila para cozinhar e armazenamento. E quando encontraram sementes que cresciam em plantas particularmente saborosas, levaram-nas durante suas caminhadas, plantando-as nos vales de rios em suas rotas, para que pudessem ter uma colheita dessas sementes no ano seguinte.
Quando estes cultivos informais ficaram um pouco maiores, começou a parecer menos vantajoso manter-se vagando quando havia tanta comida em um só lugar. Na região do Levante, ao longo do Mediterrâneo oriental, grupos nômades que outrora viviam da caça e coleta começaram a se estabelecer em pequenas aldeias em parte do ano.

Ascensão e queda das protocidades
À medida que essas pessoas aumentavam seus estoques de alimentos, as mulheres começaram a dar à luz a mais filhos. Grupos nômades de 20 ou 30 pessoas tornaram-se aldeias de 200. E algumas dessas aldeias, como Çatalhöyük na região central da atual Turquia, cresceram até alguns milhares de pessoas.
É difícil dizer o que, exatamente, Çatalhöyük era. Era uma cidade ou apenas algum tipo de aldeia bizarra, descomunal? Sabemos que perdurou por milênios, com milhares de pessoas ali vivendo continuamente a partir de cerca de 7500 AEC até 5700 AEC. Talvez possamos dizer que foi a coisa mais próxima de uma cidade no Neolítico, uma vez que muito mais pessoas viviam lá do que nas aldeias típicas próximas. Mas ela não tinha nenhuma das características que nós associamos às cidades grandiosas e com muralhas que surgiram milhares de anos mais tarde, no norte da África, na Ásia e no Oriente Médio.

   Imagem de Çatalhöyük por Dan Lewandowski. É importante lembrar que na vida real provavelmente muitos desses edifícios devem ter desabado e sido abandonados, usados como montes de entulhos. 

Não havia palácios, nem grandes zigurates ou pirâmides dedicadas aos deuses, e nenhum sinal de distinção de classes. Cada família tinha uma habitação pequena e ligeiramente retangular de um cômodo com uma lareira. Essas casas eram todas mais ou menos do mesmo tamanho. Não existiam ruas em Çatalhöyük – as casas eram erguidas uma ao lado da outra, similarmente a um favo de mel, e as pessoas caminhavam sobre os tetos das outras residências para chegar em casa, entrando através de portas em seus tetos. Embora houvesse arte, não havia escrita. E pouco havia no caminho que levasse ao trabalho especializado. Ao contrário da antiga Uruk ou de Mohenjo Daro, não havia manufaturas caseiras de adornos ou de produção de armas. As famílias viviam da caça, mas principalmente mantendo cultivos e pequenos rebanhos de animais como cabras nas colinas próximas.
Talvez Çatalhöyük não se parecesse muito com as cidades como as conhecemos, mas ela e outros grandes aglomerados eram as formas mais desenvolvidas de povoação em qualquer lugar do mundo naquela época. Eles foram os desenvolvimentos urbanos da sua época, abrigando grandes populações e promovendo o progresso tecnológico como cozinhar com produtos lácteos e fabricar cerâmica cozida (ambas eram grandes invenções de alta tecnologia no Neolítico).
Agora é que as coisas ficam estranhas. Em meados dos anos quinto milênio AEC, Çatalhöyük foi subitamente abandonada. A mesma coisa aconteceu com várias outras aldeias-cidades de grandes proporções no Levante. Suas populações se dispersaram, e as pessoas voltaram a viver nas pequenas aldeias por milhares de anos.
Ainda mais misterioso é o fato de haver um padrão semelhante - intensificação da agricultura, expansão da população, crescimento dos assentamentos e abandono - em outras partes do mundo. A agricultura chegou bem mais tarde à Europa Ocidental e à Inglaterra, de forma que este ciclo pode ser visto começando aproximadamente há 5.000 anos (em torno de 3000 AEC) em muitas regiões da Europa e na Inglaterra.
O que aconteceu?

O problema em se tornar sedentário
A vida sedentária pode ter significado mais alimentos e menos caminhadas, mas não foi fácil. Com uma grande população dependente de algumas poucas fontes locais de alimentos, os humanos tornaram-se vulneráveis como nunca foram enquanto nômades caçadores-coletores. Um período de clima desfavorável pode destruir toda a oferta de alimentos. E não é fácil se deslocar para outro lugar quando se tem uma população de 1.000 pessoas ou mais que estão acostumados à vida sedentária.
No Levante, uma mudança climática parece ser um culpado óbvio na desintegração das grandes aldeias-cidades. Çatalhöyük era cercada por rios perenes; hoje eles secaram.
Como o paleontólogo de Harvard Ofer Bar Josef defendeu na maior parte de sua carreira, parece certo que condições climáticas favoráveis permitiram que a agricultura florescesse no Levante. Mas no final do Neolítico, o clima se tornou mais frio e seco. Um lugar como Çatalhöyük já não podia mais se manter com as safras locais e a fome pode ter se tornado um grande problema. A dispersão em pequenas aldeias deu às pessoas uma chance de ter os confortos da vida sedentária sem a dependência de grandes safras para alimentar a todos.
Mas os arqueólogos que estudam as reduções populacionais na Europa sugerem outra explicação. O arqueólogo Stephen Shennan da University College London e sua equipe descobriram que não houve correlação entre as mudanças climáticas e a redução populacional na Europa. Eles sugerem que o que parece ser o abandono de grandes aglomerados populacionais pode na verdade ser reduções populacionais devido a doenças. Uma das principais desvantagens para a vida em um grande assentamento é que as doenças se espalham como fogo - especialmente supondo-se que as condições sanitárias eram mínimas. Na maioria das vezes, as pessoas despejavam seu lixo ao lado de suas casas.
Ainda assim, várias cidades sofreram com pragas e fome nos últimos milhares de anos – recuperando-se em seguida. Por que as pessoas abandonam os projetos das protocidades das grandes povoações neolíticas, sem nunca reconstruí-los novamente?
A agricultura é frequentemente chamada de "revolução neolítica". Então, o antropólogo Ian Kuijt da Universidade de Notre Dame chama esses colapsos de "fracasso da experiência neolítica". Ele descreve a expansão e abandono de uma mega-aldeia chamada Basta, localizada no que hoje é a Jordânia. Como Çatalhöyük, Basta se tornou maior do que outras aldeias ao seu redor. Para lidar com o crescimento populacional, as pessoas do Basta inventaram a arquitetura de dois andares, e começaram a subdividir seus espaços de convivência em cômodos cada vez menores. Muitas casas continham áreas especializadas para a convivência e para o armazenamento de alimentos.



Mas Kuijt não acredita que Basta foi abandonada porque sua população se tornou maior que seus recursos podiam sustentar. Em vez disso, sua população se tornou maior que os seus sistemas de crenças podiam suportar.

Velhas crenças e novas tecnologias
O problema é que as pessoas nas protocidades neolíticas herdaram um sistema de organização social e espiritualidade de seus ancestrais nômades. Como a vida nômade requer que todos no grupo compartilhem recursos para sobreviver, esses grupos desenvolveram rituais e costumes que reforçavam uma estrutura social bastante igualitária. Certamente houve famílias que tinham posições mais proeminentes em um grupo de caçadores-coletores ou numa pequena aldeia, mas se elas começassem a acumular recursos demais, isso seria ruim para todo o grupo. Então as pessoas desencorajariam fortemente umas às outras de exibições ostentosas de diferenças sociais.
Este conjunto de crenças pode ser visto refletido no ambiente construído de Çatalhöyük, onde todas as casas são mais ou menos do mesmo tamanho. Algumas casas têm algumas coisas a mais - mais peças de arte ou mais objetos rituais - mas como dito anteriormente, ninguém estava vivendo no equivalente Neolítico de uma mansão.
Tudo isso funciona muito bem em uma comunidade pequena, onde você conhece todos os seus vizinhos e apenas compartilha com pessoas cujas vidas são ligadas à sua (mesmo se você não gosta muito delas). Mas quando você tem milhares de pessoas vivendo juntas, é mais difícil ter uma estrutura social planificada. As pessoas precisam de representantes locais para representá-las; talvez até mesmo de um sistema de escrita para manter o controle de todos e do que possuem. Algumas pessoas começam a fazer tarefas especializadas, dando início à diferenciação social.
Mas a ideologia dessas pessoas nas protocidades neolíticas, Kuijt especula, deve ter tratado qualquer tipo de diferenciação social como um tabu. Assim que alguém conseguiu poder suficiente para ser um representante ou um protopolítico, outras pessoas tê-lo-iam afrontado. Kuijt acredita que importantes conflitos podem ter surgido desta tensão entre a crença na organização social planificada e a necessidade de se criar hierarquias sociais nas sociedades maiores. É uma hipótese intrigante, especialmente quando se considera que quando as cidades ressurgiram no quarto milênio AEC, elas tinham hierarquias sociais rígidas com reis, xamãs e escravos. Além disso, elas tinham a escrita, que então é usada fundamentalmente para listar onde cada pessoa vive e quais as suas posses ou bens.

  Reconstrução artística da antiga cidade de Uruk, com suas estruturas monumentais tornando a diferenciação social visível em sua arquitetura.  

É possível que o modelo de vida das protocidades não fosse sustentável porque era apoiado em sistemas de crenças que só poderiam existir em pequenas comunidades onde todos compartilhavam os recursos. Isso explicaria porque as pessoas abandonaram esses sítios, passando a viver em pequenas aldeias que nunca excediam cerca de 200 pessoas.
De certa forma, a agricultura foi uma tecnologia que chegou antes que a civilização humana estivesse pronta. Ela deu aos seres humanos os meios que possibilitaram grandes assentamentos e protocidades. Mas a humanidade havia vivido dezenas de milhares de anos como nômades antes disso, e ainda não estava pronta para abandonar suas antigas crenças de que nenhuma família deveria acumular mais do que seus vizinhos. Como resultado, nosso mais antigo experimento com o urbanismo terminou em fracasso. Quando as coisas ficaram difíceis, com colheitas insuficientes e doenças, os humanos preferiram abandonar as suas criações urbanas nascentes porque ainda não haviam desenvolvido uma estrutura social que permitisse lidar com as dificuldades da vida na cidade.

Foi por pouco. O mundo urbano como conhecemos hoje poderia não ter existido. Se a humanidade não tivesse chegado a um acordo com a revolução agrícola, é possível que os humanos nunca tivessem sido capazes de sustentar comunidades maiores do que uma aldeia.



quinta-feira, 28 de julho de 2011

Américas antes de Colombo - Parte 15: comparando incas e astecas

Comparando incas e astecas
Tanto o império inca quanto o asteca eram baseados em longos desenvolvimentos de civilização que os precederam. Enquanto em algumas áreas de realizações artísticas e intelectuais povos anteriores os ultrapassaram, ambos representaram o sucesso da organização imperial e militar. Ambos eram baseados na agricultura intensiva organizada por um estado que acumulava o excedente de produção e então controlava a circulação dos bens e sua redistribuição aos grupos ou classes sociais. Em ambos os estados antigas instituições em parte baseadas em parentesco, o ayllu e o calpulli, foram sendo transformadas pelo surgimento de uma hierarquia social na qual a nobreza era cada vez mais predominante. Em ambas as áreas esta nobreza também era o corpo de funcionários do estado, de forma que a organização estatal era quase uma imagem da sociedade.
Enquanto os incas tentaram criar um estado político dominante e fizeram tentativas para integrar o império como uma unidade (os astecas fizeram menos quanto a isso), ambos os impérios reconheciam os grupos étnicos e os líderes políticos locais e se dispunham a permitir uma variação considerável de um grupo ou região para outra – isto é, desde que a soberania inca ou asteca fosse reconhecida e o tributo pago. Tanto astecas quanto incas, como os espanhóis depois deles, descobriram que seu poderio militar foi menos efetivo contra os povos nômades que viviam em suas florestas. Essencialmente, os impérios foram criados pela conquista de povos agrícolas sedentários e pela extração de tributo e trabalho desses povos.
Não se podem negligenciar as diferenças consideráveis entre a Mesoamérica e a região andina em termos de clima e geografia nem ignorar as diferenças entre as civilizações inca e asteca. O comércio e os mercados, por exemplo, eram bem mais desenvolvidos em geral no Império Asteca e até mesmo antes na Mesoamérica que no mundo andino. Havia diferenças consideráveis na metalurgia, nos sistemas de escrita, na definição social e na hierarquia. Mas dentro do contexto das civilizações mundiais, provavelmente é bem melhor ver estes dois impérios e as áreas culturais que eles representaram como variações de padrões e processos similares dos quais a agricultura sedentária é o mais importante. A variação de similaridades básicas subjacentes também pode ser vista nos sistemas de crenças e cosmologia e na estrutura social. Se origens similares, contatos diretos ou indiretos entre as áreas ou o desenvolvimento paralelo na Mesoamérica e nos Andes explicam a similaridade, são fatos a serem explorados. Mas as civilizações nativas americanas compartilharam muito entre si, e o fator adicional de seus isolamentos relativos em relação a culturas externas e influências biológicas deu-lhes suas naturezas peculiares e em última análise suas vulnerabilidades. Ao mesmo tempo, a habilidade para sobreviver ao choque da conquista e a contribuição para a formação de sociedades após a conquista demonstra muito de suas resiliência e resistência. Muito tempo depois dos impérios inca e asteca terem deixado de existir, os povos dos Andes e do México continuam a recorrer a estas tradições culturais.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Américas antes de Colombo - Parte 14: governo imperial inca e realizações culturais

O conceito de estreita cooperação entre homens e mulheres também se refletia na visão inca do universo. Os deuses e deusas eram cultuados por homens e mulheres, mas as mulheres sentiam uma afinidade particular pela lua e pelas deusas da terra e do milho, as deidades da fertilidade. A rainha inca, a esposa mais velha do inca (que normalmente também era sua irmã), era vista como um elo com a lua, rainha e irmã do sol; ela representava a autoridade imperial para todas as mulheres. Mas, apesar da ideologia de igualdade dos gêneros, a prática inca criou uma hierarquia de relacionamentos de gêneros que se combinava com a dominação do estado inca sobre os povos subjugados. O poder do império sobre os grupos étnicos locais é demonstrado pela capacidade que os incas tinham em selecionar as mais belas jovens mulheres para servir nos templos ou para serem dadas ao inca.
A integração da política imperial com a regional e a diversidade étnica era uma realização política. Os líderes étnicos eram mantidos, mas acima deles estavam os administradores incas retirados da nobreza de Cuzco. A reciprocidade e a verticalidade continuaram a caracterizar os grupos andinos à medida que eles passaram a ser governados pelos incas, com a reciprocidade entre o estado e as comunidades locais simplesmente sendo mais um nível adicionado. O estado inca forneceria estradas, projetos de irrigação e matéria-prima para obtenção de bens. O milho, por exemplo, era normalmente cultivado em terras irrigadas e era particularmente importante como uma safra ritual. O estado patrocinava a irrigação junto com o seu cultivo. O estado inca manipulava a ideia de reciprocidade para conseguir força de trabalho, reprimindo duramente resistência e revoltas. Além do campesinato ayllu, havia também uma classe de pessoas, os yanas, que eram retirados de seus ayllus e serviam permanentemente como criados, artesãos ou como trabalhadores dos incas ou da nobreza inca.
A nobreza inca era significativamente privilegiada e aqueles aparentados do próprio inca ocupavam as posições mais elevadas. Toda a nobreza provinha dos dez ayllus reais. Além disso, dava-se status de nobre aos residentes de Cuzco para capacitá-los ao serviço em altos postos burocráticos. Os nobres se distinguiam por roupas e costumes. Apenas a eles se permitia usar os grandes carretéis que aumentavam as orelhas e motivou os espanhóis a chamá-los depois de orejones (orelhões). Uma classe mercantil distinta era notavelmente ausente na maior parte do Império Inca. Diferente da Mesoamérica, onde o comércio de longa distância era muito importante, a ênfase inca na autossuficiência e na regulação da produção e do excedente pelo estado limitou o comércio. Apenas no norte do império, nas tribos do Equador, a última região conquistada pelos incas, havia uma classe especializada de comerciantes.
O sistema imperial inca que controlava uma área de quase 5.000 km de extensão foi uma realização política impressionante, mas como todos os impérios, ele durou apenas enquanto pôde controlar suas populações subjugadas e seus próprios mecanismos de governo. Um sistema de múltiplos casamentos reais como uma maneira de formar alianças criou requerentes rivais pelo poder e a possibilidade da guerra civil. Foi exatamente isso que aconteceu na década de 1520, pouco antes da chegada dos europeus. Quando os espanhóis chegaram ao Peru, eles encontraram um império enfraquecido desgastado pelo conflito civil.

Realizações culturais incas
Os incas se inspiraram nas tradições artísticas de seus predecessores e nas habilidades dos povos conquistados. Cerâmicas e tecidos de muita beleza eram produzidos em oficinas especializadas. A metalurgia inca estava entre as mais avançadas das Américas, e os artesãos incas trabalhavam ouro e prata com grande habilidade técnica. Os incas também usavam cobre e algum bronze para armas e ferramentas. Como os povos mesoamericanos, os incas não fizeram uso prático da roda, mas diferente deles, não desenvolveram um sistema de escrita. No entanto, os incas faziam uso de um sistema de cordas com nós, ou quipos, com os quais informações numéricas e talvez outras informações eram registradas. Esse sistema funcionava de certa forma como um ábaco, e com ele os incas realizavam censos e mantinham registros financeiros. Os incas tinham uma paixão pela ordem numérica, e o povo era dividido em unidades decimais de forma que a população, o alistamento militar e os detalhes de trabalho poderiam ser calculados. A existência de tantas características associadas à civilização no Velho Mundo e, apesar disso, a ausência de um sistema de escrita entre os incas deveria fazer-nos compreender a variação do desenvolvimento humano e os perigos de nos tornarmos muito apegados a certas características ou traços culturais na definição das civilizações.
O talento inca foi mais bem exibido na política, na sua arquitetura e nos edifícios públicos. A lapidação inca era consideravelmente acurada e os melhores edifícios foram construídos de grandes pedras encaixadas sem o uso de argamassa. Alguns desses edifícios eram imensos. Estas construções, os grandes terraços agrícolas e projetos de irrigação e o sistema extensivo de estradas estavam entre as maiores realizações incas, exibindo sua habilidade técnica e sua capacidade, assim como seu poder em mobilizar grandes quantidades de mão-de-obra.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Américas antes de Colombo - Parte 13: conquista e religião, governo imperial inca

Conquista e religião
O que impeliu os incas à conquista e à expansão? O desejo normal de ganho econômico e poder político que podem ser vistos em outros impérios fornece uma explicação adequada, mas deve haver outras mais de acordo com a cultura e a ideologia inca. O culto dos ancestrais era extremamente importante na crença inca. Os governantes falecidos eram mumificados e então tratados como intermediários dos deuses, exibidos em público durante os festivais, recebiam oferendas de comida e presentes e eram consultados sobre assuntos importantes por oráculos especiais. Do reino chimu, os incas adotaram a prática de “herança dividida” real, na qual todo o poder político e os títulos do governante passavam para seu sucessor, mas todos os seus palácios, riqueza, terras e propriedades permaneciam nas mãos de seus descendentes masculinos, que os usava para sustentar o culto da múmia do inca morto pela eternidade. Então, cada novo inca, para assegurar seu próprio culto e lugar na eternidade, precisava conseguir terras e riqueza, e estas normalmente vinham como parte de novas conquistas. Na verdade, quanto maior o número de governantes incas no passado, maior o número de cortes reais para sustentar e maior a demanda por trabalho, terras e tributos. Este sistema criou uma necessidade perpétua por expansão, ligada diretamente ao culto ancestral e ao culto das múmias reais, assim como às tensões entre as várias linhagens reais. De certo modo, o culto dos mortos pesava cada vez mais pesadamente sobre os vivos.
A vida política e social inca era infundida de significado religioso. Como os astecas, os incas tinham o sol como sendo a deidade mais elevada e consideravam o inca como sendo o representante do sol na Terra. O magnífico Templo do Sol em Cuzco era o centro da religião estatal, e nos seus limites as múmias dos incas do passado residiam. O culto do sol era disseminado por todo o império, mas os incas não proibiam o culto dos deuses locais.
Outras deidades também eram adoradas como parte da religião estatal. Viracocha, o deus criador, era o favorito do inca Pachacuti e permaneceu importante. A crença popular era baseada em um profundi animismo que favorecia muitos fenômenos naturais com poderes espirituais. Montanhas, pedras, rios, cavernas ou tumbas e templos eram considerados como sendo huacas, ou santuários sagrados. Nesses lugares, ofereciam-se preces e eram feitos sacrifícios com animais, produtos e humanos. Na área de Cuzco, linhas imaginárias saiam do Templo do Sol, organizando os huacas em grupos pelos quais determinados ayllus se responsabilizavam. Muitos sacerdotes serviam nos templos e mulheres se dedicavam à preparação de tecidos e comida para sacrifícios. Os sacerdotes do templo eram responsáveis principalmente pelos grandes festivais e celebrações e pelas profecias das quais as ações do estado muitas vezes dependiam.

As técnicas do governo imperial inca
Os incas foram capazes de manter o controle sobre seu vasto império através de várias técnicas e práticas que asseguraram tanto cooperação quanto subordinação. O império era governado pelo inca, que era considerado virtualmente um deus. Ele governava a partir de sua corte em Cuzco, que também era o lugar do templo principal; o sumo-sacerdote era normalmente um parente próximo. Twantinsuyu era dividido em quatro grandes províncias, cada uma delas com um governador e também divididas em unidades menores. Os incas desenvolveram uma burocracia estatal na qual quase toda a nobreza desempenhava uma função – enquanto alguns cronistas falam de uma organização estatal baseada em unidades decimais de 10.000, 1.000, 100 e números menores de famílias para recolher impostos e mão-de-obra, pesquisas recentes revelam que muitas práticas e variações locais eram permitidas para dar continuidade ao governo inca. Aos governantes locais, ou curacas, era permitido manter suas posições e eram concedidos privilégios pelo inca em troca de lealdade. Os curacas eram isentos das obrigações tributárias e normalmente recebiam trabalho ou produtos agrícolas daqueles sob seu controle. Como garantia, os filhos dos chefes conquistados eram levados a Cuzco para serem educados.
Os incas intencionalmente disseminaram a língua quéchua como um meio de integrar o império. Os incas também fizeram uso extensivo de colonos. Ocasionalmente, falantes de quéchua de Cuzco poderiam ser assentados em uma recentemente conquistada para dar o exemplo e estabelecer uma guarnição. Em outras ocasiões, uma população conquistada irrequieta era movida para novas terras. Por todo o império, um complexo sistema de estradas foi construído com pontes e trilhas elevadas quando necessário. Ao longo destas estradas foram estabelecidas estações a cerca de um dia de caminhada umas das outras para servir como hospedarias, depósitos e centros de abastecimento para os exércitos incas em movimento. As estações, ou tambos, também serviam como pontos de troca para o sistema de mensageiros que transmitiam as informações através do império. Os incas provavelmente mantinham mais de 10.000 estações.
O império inca funcionava pela extração de terras e trabalho das populações sujeitadas. Os povos conquistados eram alistados nos exércitos sob oficiais incas e eram recompensados com bens de novas conquistas. Os povos sujeitados recebiam acesso a bens que antes não estavam disponíveis a eles, e o estado inca se responsabilizava por grandes projetos de construção e irrigação que anteriormente teriam sido impossíveis. Em troca, os incas exigiam lealdade e tributo. O estado reclamava todos os recursos e os redistribuía. Os incas dividiam as áreas conquistadas em terras para o povo, terras para o estado e terras para o sol – isto é, para a religião e sustento dos sacerdotes. Havia também propriedades privadas mantidas por alguns nobres.
Com poucas exceções, os incas, diferente dos astecas, não exigiam tributo em espécie e sim trabalho nas terras designadas ao estado e à religião. As comunidades cumpriam turnos de trabalho nas terras do estado e do templo e ocasionalmente em projetos de construção ou na mineração. Estes turnos de trabalho eram um aspecto essencial do controle inca. Além disso, os incas exigiam mulheres para tecer panos de alta qualidade para a corte e para propósitos religiosos. Os incas forneciam a lã para as famílias produzirem tecidos. Os tecidos, uma grande forma de arte andina, tinham significância política e religiosa. Algumas mulheres eram tomadas como concubinas pelos incas e outras eram selecionadas como servas para os templos, as chamadas “Virgens do Sol”. Em tudo isso, os incas tinham um sistema imperial completo, mas que permanecia sensível às variações locais de forma que sua aplicação acomodasse diferenças étnicas e regionais.
Em teoria, cada comunidade visava a autossuficiência e dependia do estado para os bens difíceis de adquirir. Os ayllus de cada comunidade controlavam a terra, e a vasta maioria da população masculina era composta de camponeses ou pastores. As mulheres ajudavam nos campos, teciam e cuidavam do lar. As funções e obrigações eram específicas por gênero e teoricamente equivalentes e interdependentes. Os povos andinos reconheciam a descendência paralela, de forma que os direitos de propriedade dentro dos ayllus e entre a nobreza passavam tanto pela linha masculina quanto pela feminina. As mulheres passavam direitos e propriedades para as filhas, e os homens para os filhos. Se nos tempos pré-incaicos as mulheres possam ter servido como líderes dos ayllus é uma questão em aberto, mas sob os incas isso parece ter sido incomum. A ênfase inca nas virtudes militares reforçava a desigualdade entre homens e mulheres mesmo que a ideologia de complementaridade dos sexos fosse muito forte.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Américas antes de Colombo - Parte 12: Incas - ascensão ao poder

O mundo dos incas
Quase ao mesmo tempo em que os astecas estenderam seu controle sobre a maior parte da Mesoamérica, um grande estado imperial estava se erguendo nos Andes, e ele, no final das contas, dominou um império de quase 5.000 km de extensão. O Império Inca incorporou muitos aspectos das culturas andinas prévias, mas os fundiu em novos costumes – e com o talento para a organização estatal e o controle burocrático sobre povos de diferentes culturas e línguas, ele atingiu um nível de integração e dominação previamente desconhecido nas Américas.
Em todo centro cultural andino, durante o período que se seguiu ao colapso ou desintegração dos grandes estados “horizontes” de Tihuanaco e Huari (c. 550-1000), vários pequenos estados regionais continuaram a exercer algum poder. Em vez da quebra de poder que ocorreu na Mesoamérica pós-clássica, vários estados relativamente grandes continuaram a ser importantes na região andina. Alguns estados nas terras altas, nas amplas áreas abertas próximas ao lago Titicaca, e outros ao longo dos rios no litoral norte, como no vale do Moche, permaneceram centros de atividade agrícola e de densidade populacional elevada. Esta época, no último desenvolvimento do estado imperial andino, foi um período de considerável beligerância entre tribos locais e pequenos estados e de certa forma era um paralelo andino à era militarista pós-tolteca na Mesoamérica. Destes estados, o reino costeiro de Chimu, centralizado em sua capital Chan Chan, emergiu como o mais poderoso. Entre 900 e a sua conquista pelos incas em 1465, ele conquistou o controle da maior parte da região litorânea do Peru.

A ascensão inca ao poder
Enquanto Chimu estendia seu controle sobre quase 1.000 km do litoral, nos altiplanos andinos do sul, onde havia poucas grandes áreas urbanas, grupos étnicos e políticos brigavam pelo legado de Tihuanaco. Entre esses grupos estavam vários clãs ou ayllus aparentados falantes de quéchua e que viviam próximos a Cuzco, uma área que tinha estado sob a influência de Huari, mas que não tinha sido particularmente importante. Suas próprias lendas afirmavam que dez clãs aparentados surgiram das cavernas na região e foram levadas para Cuzco por um líder mítico. Quaisquer que sejam suas origens, por volta de 1350 eles viviam em Cuzco e redondezas, e por volta de 1438 derrotaram seus vizinhos hostis na região. Nesse momento, sob seu governante, ou Inca, Pachacuti (1438-1471), eles iniciaram uma série de alianças militares e campanhas que lhes deu o controle sobre toda a área de Cuzco até as margens do lago Titicaca.
Nos 60 anos seguintes, os exércitos incas estavam constantemente em marcha, estendendo o controle sobre um vasto território. O filho e sucessor de Pachacuti, Túpac Yupanqui (1471-1493), conquistou o reino costeiro de Chimu através da tomada de seu sistema de irrigação, e estendeu o controle inca ao sul do que hoje é o Equador. Na outra extremidade do império, os exércitos incas alcançaram o rio Maule no Chile, enfrentando uma resistência obstinada dos índios araucanos. O governante seguinte, Huayna Capac (1493-1527), consolidou estas conquistas e suprimiu várias rebeliões nas fronteiras. Na época de sua morte, o Império Inca – ou como eles o chamavam, Twantinsuyu – se estendia do que hoje é a Colômbia até o Chile e na direção leste através do lago Titicaca e Bolívia até o norte da Argentina. Entre nove e treze milhões de pessoas de diferentes etnias e línguas estavam sob domínio inca, uma façanha notável dada a extensão do império e a tecnologia disponível para transporte e comunicação.

sábado, 23 de julho de 2011

Américas antes de Colombo - Parte 11: culturas regionais, mochicas, Chimu e estilo de vida

Chan Chan, capital de Chimu.
Culturas regionais e um novo horizonte
Por volta de 300 AEC, Chavín estava em declínio, e qualquer que fosse a unidade do estilo Chavín amplamente disseminado, ele foi perdido. O mundo andino agora era caracterizado pelos centros regionais, cada um com suas próprias tradições culturais e artísticas. Este foi um período sem unidade política, mas que produziu algumas das mais belas artes andinas. A agricultura irrigada produziu uma ampla variedade de safras, a domesticação de lhamas e animais relacionados, populações densas e sociedades hierárquicas podiam ser encontradas em vários lugares. Algumas sociedades, como Nazca no litoral sul e Moche no norte, produziram cerâmicas e tecelagens excelentes.
A tecelagem nazca alcançou uma alta posição nas Américas. A descoberta na década de 1920 de um grupo de múmias esplendidamente vestidas em Paracas, próximo a Nazca, revelou as realizações artísticas desses antigos tecelões. Mais de cem cores eram usadas e muitas técnicas de tecelagem e tipos de tecido eram produzidos; os desenhos eram frequentemente abstratos. A planície próxima a Nazca é também o ambiente de grandes figuras de vários animais, que cobrem muitas centenas de metros e que apenas podem ser vistas de muito alto. Também há grandes linhas retas ou caminhos que cortam a planície e parecem ser orientadas na direção de grandes montanhas ou pontos celestes. Por que estas linhas e desenhos foram feitos é uma incógnita.
O estado mochica (200-700), no vale do Moche e no litoral a norte de Chavín, mobilizou trabalhadores para construir grandes templos de tijolos de argila, residências e plataformas. Os artesãos produziam joias de ouro e prata e ferramentas de cobre. A arte cerâmica alcançou um ponto elevado; as cenas na cerâmica mochica retratam governantes recebendo tributo e executando prisioneiros. Nobres, sacerdotes, fazendeiros, soldados e escravos também são retratados em formas bastante naturais; muitos vasos são claramente retratos de membros individuais da elite. Os mochicas também produziram um grande número de vasos cerâmicos extremamente explícitos mostrando uma variedade de atividades sexuais. Estas cenas estão quase em ambientes domésticos e indicam descrições da vida diária ao invés de uniões rituais.
Moche expandiu seu controle pela conquista. A arte mochica contém muitas representações de guerra, prisioneiros e cabeças cortadas como troféus. Há também evidências arqueológicas de fortes e postos militares em topos de montes. Politicamente, Moche e outros estados regionais parecem ter sido estados militares ou tribos de chefatura, sustentados pela agricultura extensiva irrigada e muitas vezes em guerra.
Uma ideia da vida na sociedade moche foi espetacularmente revelada com a descoberta em 1988 da tumba de um sacerdote-guerreiro. Sepultado com servos e com seu cachorro, este nobre estava coberto com ornamentos de ouro, prata e cobre, tecidos magníficos e joias. As cenas desenhadas nesses objetos e na cerâmica sepultada com ele incluem prisioneiros cativos, sacrifício ritual e guerra.
Este padrão de desenvolvimento regional continuou até cerca de 300 EC, quando dois grandes centros, Tihuanaco às margens do lago Titicaca e Huari, no sul do Peru, começaram a emergir como grandes estados. Não se sabe ao certo a dimensão do controle político centralizado que eles exerceram, mas como no caso anterior de Chavín, os símbolos religiosos e o estilo artístico associados a esses centros se tornaram amplamente difundidos no mundo andino, criando talvez um segundo horizonte ou Horizonte Intermediário (c. 300-900) aproximadamente contemporâneo dos maias clássicos e de Teotihuacán na Mesoamérica.
Tihuanaco era um centro urbano cerimonial com uma população de talvez 40.000 pessoas, sustentada pela agricultura irrigada extensiva. O trabalho arqueológico recente revelou um sistema extensivo de campos elevados, irrigados por canais, que seriam de alto rendimento. Os habitantes de Tihuanaco provavelmente falavam aimará, língua que ainda é falada hoje na Bolívia. O estilo artístico de Tihuanaco e representações de seus deuses se espalharam por todo o sul dos Andes.
No modelo andino típico, Tihuanaco estendeu seu controle político a colônias tão longínquas quanto no Chile e nos declives andinos orientais para assegurar o acesso à pesca, à coca e às plantas tropicais – os produtos de diferentes zonas ecológicas. Huari deve ter começado como uma colônia de Tihuanaco, mas como o tempo ela exerceu ampla influência sobre a maior parte da zona norte-andina. Enquanto o período de seu controle foi relativamente curto, a área urbana de Huari no final das contas cobria mais de 15 km² e sua influência foi disseminada pela construção de um sistema de estradas.
O Horizonte Intermediário, representado por Tihuanaco e Huari, chegou ao fim no século IX, aproximadamente ao mesmo tempo do fim do período clássico na Mesoamérica. Se esses dois processos estiveram conectados ainda não se sabe. Com o declínio dessas culturas expansivas no Peru, outro período de desenvolvimento regional se seguiu à medida que diferentes povos, especialmente aqueles ao longo do litoral, tentaram estabelecer controle sobre seus vizinhos. O estado Chimu no litoral norte, baseado em sua magnífica capital Chan Chan, com o tempo passou a controlar mais de 950 km da zona costeira.
O estado Chimu, fundado por volta de 800, ainda estava se expandindo quando foi conquistado pelos incas em 1465. Neste período, outros pequenos estados se formaram. Do oeste do lago Titicaca ao litoral do Pacífico, os lupacas criaram um reino. Nas margens do lago e nos ricos vales do declive oriental dos Andes, outras pequenas chefaturas se formaram. Enquanto isso, vários grupos étnicos estavam lutando pelo controle de seus vizinhos no altiplano. Um destes, um grupo de clãs falantes de quéchua, ou ayllus, passou a controlar as terras altas em torno de Cuzco e começou a se expandir, especialmente após 1400. Tratava-se dos incas, que estavam no centro da criação de um novo horizonte de controle centralizado e influência cultural considerável sobre os vários grupos étnicos e linguísticos do mundo andino do Equador ao Chile, quando os europeus chegaram em 1532.

Modos de vida andinos
Embora seja difícil reconstruir a maior parte da organização social e política das primeiras sociedades andinas com base na evidência arqueológica, pelo uso de observações do período inca junto com materiais arqueológicos podem-se identificar algumas características. A verticalidade já foi tratada (o controle de vários nichos econômicos em diferentes altitudes) como um princípio da vida andina. Este controle e a autossuficiência relacionada era às vezes o objetivo dos estados, mas também era a meta de famílias e comunidades. Os grupos de parentesco eram outra constante do mundo andino.
Os povos andinos estavam divididos em grupos étnicos e falavam várias línguas, embora o aimará predominasse nas terras altas bolivianas e os incas depois tenham disseminado o quéchua a partir dos Andes centrais para o litoral e para o norte até o Equador. Apesar das diferenças étnicas e linguísticas, as comunidades eram geralmente compostas por famílias, que juntas reconheciam alguma forma de parentesco. Estas unidades de parentesco, ou ayllus, traçavam descendência de algum ancestral comum, às vezes mítico, e se referiam aos outros membros do ayllu como irmãos e irmãs. As pessoas normalmente se casavam dentro do seu próprio ayllu. O ayllu consignava a cada família terras e acesso aos rebanhos e à agua. Mas os direitos e os acessos não eram iguais para todas as famílias dentro de um ayllu. Os ayllus eram frequentemente divididos em metades, que podiam ter diferentes funções e cargos. Esta era uma forma de organização que os povos das civilizações das terras altas compartilhavam com muitas tribos da floresta amazônica.
Havia também líderes comunitários e chefes ayllus, ou curacas, com privilégios na vestimenta e no acesso aos recursos. Os grupos de ayllus compartilhavam um dialeto similar, costumes e roupas distintivas que os unia em grupos étnicos, e às vezes vários desses grupos eram forjados em um estado. Os laços de parentesco eram usados para mobilizar a comunidade para o trabalho cooperativo e para a guerra. O ayllu era a organização básica, e o parentesco fornecia um entendimento da cooperação e do conflito da aldeia ao império. Alguns autores têm sugerido que, até mesmo nos grandes estados, os conflitos ocorriam mais frequentemente entre ayllus ou grupos de ayllus que entre as classes sociais secundárias.
O princípio de reciprocidade que estava sob a organização cooperativa do ayllu inspirava a maior parte da vida social andina. As obrigações mútuas existiam em muitos níveis – dentro da família entre homens e mulheres, entre grupos familiares dentro do ayllu e entre os curacas, de quem se esperava que representasse os interesses dos ayllus. Finalmente, em teoria pelo menos, a reciprocidade também existia entre comunidades e um grande estado, tal como Huari, do qual em troca por trabalho e tributo se esperava que fornecesse acesso aos bens e mobilizasse grandes projetos, tais como irrigação ou construção de terraços, que beneficiariam a comunidade. A reciprocidade também influenciava a crença religiosa. Os povos andinos viviam em um mundo onde os espíritos e poderes sagrados, ou huacas, eram visíveis em cavernas, montanhas, rochas, rios e em outros fenômenos naturais. O culto dos huacas e das múmias dos ancestrais (que também eram consideradas sagradas e parte da vida religiosa andina), pelo menos a partir do período Nazca, também era uma questão de troca recíproca.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Américas antes de Colombo - Parte 10: mundo andino, cultura Chavín

O mundo andino
O surgimento da civilização na América do Sul repetiu muitos dos processos da Mesoamérica, mas foi também condicionado pelas características geográficas sul-americanas. O mundo andino apresentou a homens e mulheres uma geografia peculiar de microrregiões complexas com mudanças extremas de altitude e temperatura. A estreita e árida faixa costeira ocidental, cortada pelos poucos rios que fluíam para o Pacífico, rapidamente abria caminho para os altos Andes, onde alguns picos se elevam acima de 4.500 metros. Entre as duas principais cadeias dos Andes existem vales elevados e estepes, ou punas, que formam as terras altas, ou altiplanos. Nesses planaltos frios (normalmente acima de 3.000 metros), o solo é relativamente nivelado e há água suficiente. Batatas e milho poderiam crescer e as estepes forneciam bons pastos para lhamas e alpacas, o “rebanho dos Andes”. As populações andinas se concentravam nos altiplanos ou no litoral árido nos vales dos rios que tornavam a irrigação possível. Nos declives orientais dos Andes, vários grandes rios corriam em direção à floresta tropical concentrados nas bacias dos rios Amazonas e da Prata. Estes declives são as montanhas úmidas, onde frutas tropicais e a folha de coca podem ser obtidas.
Esta topografia acidentada impôs limitações e criou oportunidades para a civilização se desenvolver. Os áridos vales costeiros demandavam irrigação, e isto estimulava o crescimento populacional e a complexidade social. Os projetos de irrigação eram enormes, envolvendo milhares de canais e diques que requeriam manutenção e construção constantes. A necessidade por irrigação criou o estado, ou a irrigação resultou da formação da autoridade centralizada? Os acadêmicos discordam, mas está claro que uma vez formados, uma função importante dos estados costeiros era a irrigação. Nos altiplanos, a irrigação e o cultivo em terraços aumentaram o suprimento de comida nas regiões onde a quantidade de terras aráveis era limitada. As populações se concentravam nos vales férteis, mas estavam separadas umas das outras por montanhas escarpadas. O comércio e a comunicação eram difíceis. Isto levou a projetos grandes e bem organizados para construir estradas, pontes e terraços agrícolas. As razões para a construção estatal eram boas. As imagens de guerra e militares e as cabeças troféus vistas na maior parte da arte peruana representam um mundo de recursos limitados e competição.
No mundo andino, mudanças verticais abruptas criaram microclimas dentro de distâncias relativamente curtas. Os povos e até mesmo comunidades individuais ou famílias tentavam controlar várias zonas ecológicas onde diferentes tipos de safra poderiam ser cultivados. Uma comunidade poderia residir no altiplano cultivando batatas e quinoa, um grão andino, mas também poderia ter campos nos vales mais baixos para plantar milho, pastos a quilômetros de distância nas elevações mais altas para seus lhamas e até mesmo uma colônia externa nos declives úmidos para fornecer algodão, coca e outros produtos tropicais. De fato, o acesso a essa variedade de zonas ecológicas por colonização, ocupação, conquista ou comércio parece ter sido uma característica constante na vida andina que determinou os padrões pré-colombianos de assentamento e influenciou o desenvolvimento histórico do mundo andino.

Desenvolvimentos pioneiros e o surgimento da cultura Chavín
A maior parte dos primórdios da história andina se adapta a um padrão de alternância entre períodos de descentralização, nos quais vários centros locais ou regionais desenvolveram culturas singulares, e períodos onde um desses centros parece ter estendido seu controle sobre áreas muito grandes, estabelecendo um horizonte cultural sob uma autoridade centralizada. Entre 3000 e 2000 AEC, povoações agrícolas permanentes estavam estabelecidas nas terras altas andinas e na costa árida do Pacífico. O milho foi introduzido a partir da Mesoamérica e era cultivado junto com safras nativas tais como a batata. Por volta de 2700 AEC, já se produzia cerâmica, primeiro no litoral norte (atual Equador) e depois no altiplano do Peru central. Esta primeira cerâmica, conhecida como artigos Valdivia, indica técnicas avançadas de produção. É consideravelmente similar às cerâmicas japonesas do período Jomon, e isso tem levado alguns acadêmicos a sugerir a hipótese de um contato transpacífico de pescadores japoneses. Quaisquer que sejam as origens da cerâmica na região, a presença de agricultura sedentária, artigos cerâmicos, tecelagem e povoações permanentes sinalizavam um nível de produtividade que logo foi seguido pela evidência de organização política. Os sítios mais antigos, como El Paraíso no litoral peruano, contêm construções monumentais de grande tamanho, mas pouco se sabe sobre as sociedades que as edificaram.
Entre 1800 e 1200 AEC, centros cerimoniais com grandes edificações de pedra foram construídos tanto nas terras altas quanto no litoral. A cerâmica agora estava amplamente distribuída; o lhama foi domesticado; e a agricultura se tornou mais complexa, com evidências de irrigação simples em alguns lugares. O mais importante desses centros era Chavín de Huántar (850-250 AEC), no altiplano peruano. Chavín continha várias plataformas templo e construções de adobe e pedra. Seus artesãos trabalhavam com cerâmica, tecidos e ouro. A cultura Chavín era caracterizada por motivos artísticos que estavam amplamente difundidos através da maior parte da região andina e parece representar um culto ou um sistema de crenças religiosas. Jaguares, cobras, aves de rapina e humanos com características felinas eram usados como decorações, muitas vezes junto com cenas de guerra e violência.
O estilo artístico era tão amplamente difundido que os arqueólogos se referem a essa época como um horizonte (Primeiro Horizonte), um período no qual parece ter existido uma autoridade central ampla que integrava uma região extensamente dispersa. Na verdade, não se sabe se a religião de Chavín foi disseminada por conquista, comércio ou atividade missionária, nem se sabe também suas origens. Ela tem algumas similaridades estilísticas notáveis com a arte olmeca da Mesoamérica; alguns arqueólogos têm apontado certas características tropicais em ambas e sugerem a planície amazônica como um possível ponto da origem de das duas tradições.
A evidência de guerra nas primeiras sociedades agrícolas peruanas talvez indique um processo geral. Com o desenvolvimento da agricultura intensiva e com uma quantidade limitada de terra arável, a organização da irrigação e a criação da autoridade política e finalmente de estados que poderiam recrutar para proteger ou expandir as terras disponíveis, foi uma necessidade vital.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Américas antes de Colombo - Parte 9: Tenochtitlán

A fundação do paraíso: Tenochtitlán, a grande cidade
A cidade-estado com seu governante porta-voz era um conceito básico do México central e se aplicava a Tenochtitlán, a capital asteca. Os mexicas se consideravam herdeiros das tradições toltecas e de suas cidades, como a nova Tula. Começando modestamente, Tenochtitlán se tornou uma grande metrópole, com uma zona central de palácios e templos pintados de branco rodeados por bairros residenciais de tijolos de argila, pequenos palácios e mercados. A área do templo era dominada pela grande pirâmide e pelos templos idênticos de Huizilopochtli e Tlaloc (este recentemente escavado pelos arqueólogos). O templo redondo de Quetzalcoatl, a escola para o sacerdócio e uns setenta outros edifícios estavam dentro ou próximos da área. A arte e a arquitetura eram excelentes. Hernán Cortés, o conquistador espanhol que viu a cidade, relatou pessoalmente: “As construções de pedra e de madeira são igualmente boas, não poderiam ser melhoradas em nenhum lugar”. Havia jardins e um zoológico mantido pelo governante. A nobreza tinha casas de dois andares, às vezes com jardins nas coberturas.
Tlatelolco, inicialmente uma cidade separada em outra ilha, foi finalmente incorporada como parte de Tenochtitlán. Ela também tinha templos e palácios impressionantes, e seu grande mercado permaneceu sendo o lugar mais importante de comércio e trocas. Os projetos de construção de vários governantes mexicas aumentaram o tamanho e a beleza da cidade. Em 1519, a cidade cobria perto de 13 km². Ela tinha uma população de 150.000 pessoas, maior do que as de cidades contemporâneas europeias como Sevilha ou Paris.
A localização da ilha deu a Tenochtitlán um caráter peculiar. Posicionada no centro de um lago, a cidade era ligada às margens por quatro amplas trilhas elevadas. Como a cidade estava construída sobre uma ilha e sobre aterros, ela era cruzada por canais que permitiam o tráfego constante de canoas e o acesso ao lago. Longe do centro da cidade, as famílias cultivavam jardins flutuantes, ou chinampas. Cada uma das mais de 60 divisões da cidade era controlada por um calpulli, ou grupo familiar, e cada um mantinha seus templos de vizinhança e edifícios cívicos. A cidade era abastecida principalmente por transporte por canoas, embora houvesse aquedutos que traziam água fresca. Um dique foi construído para manter as águas salobras da porção leste do lago longe da cidade e da zona agrícola. Havia pequenas comunidades em ilhas e, ao longo das margens do lago, havia outras vilas e cidades densamente povoadas. O êxito estrutural era impressionante.
Um soldado de infantaria espanhol que viu a cidade em 1519 escreveu:
 
“Vendo paisagens tão maravilhosas, não sabíamos o que dizer. Será que o que
apareceu diante de nós era real? Por um lado, na terra, havia grandes cidades, e no
lago muito mais, e o lago estava apinhado de canoas, e na estrada elevada havia
muitas pontes em intervalos, e na nossa frente se erguia a grande cidade do México.”
 
Descrições tão realistas de observadores ocidentais relatam apenas uma porção da história. Tenochtitlán tinha uma organização interna que reproduzia o universo religioso e social asteca. Suas quatro estradas elevadas estavam associadas com as quatro direções cardeais e com os deuses de cada uma delas. Dentro da cidade, os bairros estavam organizados em pares de 20 grupos corporativos comunais e em vários agrupamentos de manutenção, cada um com seu templo comunitário e sua escola para manter. O ciclo de festivais, o calendário e a cosmologia da religião asteca eram representados fisicamente pela organização da cidade e pelo lugar e hierarquia dos grupos corporativos dentro dela. Tais agrupamentos eram baseados em ocupações, residência ou etnia. Este último agrupamento era importante porque Tenochtitlán e os próprios astecas incluíam grandes populações étnicas não astecas até mesmo em suas origens. Na verdade, a maior parte do mito asteca e da história oficial era desenhada para criar um povo unificado fora de uma aglomeração de grupos.
Tenochtitlán era o coração de um império e cobrava tributo e apoio de seus aliados e dependentes, mas em teoria ela era apenas uma cidade-estado governada por um líder, exatamente como as outras 50 ou mais cidades-estado do planalto central. Mesmo assim, os astecas a chamavam de “fundação do paraíso”, a base de seu poder. Ela foi uma grande cidade mundial, mas diferente de Roma ou Atenas, Tenochtitlán foi depois tão completamente obliterada que, mesmo durante a vida de seus conquistadores, um deles lamentou que “tudo está derrubado e perdido, nada restou de pé”. A atual Cidade do México localiza-se no lugar da antiga capital asteca.

Alimentando o povo: a economia do império
A alimentação da grande população de Tenochtitlán e da confederação asteca em geral dependia das formas tradicionais de agricultura e das inovações desenvolvidas pelos astecas. As terras dos povos conquistados eram frequentemente desapropriadas, e comida era às vezes demandada como tributo. De fato, as quantidades de milho, feijão e de outros alimentos trazidos para Tenochtitlán anualmente eram descomunais. No lago e em volta dele, no entanto, os astecas adotaram um engenhoso sistema de agricultura irrigada pela construção de chinampas para cultivo. Havia canteiros de ervas aquáticas, lodo e terra que eram colocados em armações feitas de varas fixadas no fundo do lago. Eles formavam ilhas flutuantes artificiais de cerca de 5 metros de comprimento e de 30 a 100 metros de largura. Esta construção estreita permitia que a água alcançasse todas as plantas, e salgueiros também eram plantados em intervalos para fornecer sombra e ajudar a fixar as raízes. A maior parte do terreno de Tenochtitlán era originalmente chinampa, e na extremidade sul do lago, mais de 20.000 acres de chinampas foram construídas.
O rendimento da agricultura chinampa era alto e quatro safras de milho por ano eram possíveis. Aparentemente, este sistema de agricultura irrigada era usado no período pré-clássico, mas um aumento no nível dos lagos impossibilitou sua continuidade. Após 1200, todavia, a diminuição dos níveis dos lagos novamente estimulou a construção de chinampas, com os astecas realizando-as em larga escala. Eles também construíram diques para separar as águas potáveis nas partes sul e oeste do lago das águas salobras das outras partes. Atualmente, os cultivos flutuantes de Xochimilco representam os vestígios da agricultura do lago.
A produção dos camponeses astecas e os tributos forneciam os alimentos básicos. Em cada comunidade asteca, o clã local partilhava as terras, parte das quais eram separadas para o sustento dos templos e do estado. Além disso, alguns nobres podiam também ter propriedades privadas que eram trabalhadas por servos ou escravos dos povos conquistados. Cada comunidade tinha comercializações periódicas – de acordo com vários ciclos no sistema de calendários, como a cada cinco e treze dias – onde uma ampla variedade de bens era trocada. Sementes de cacau e pó de ouro eram às vezes usados como moeda, mas a maior parte do comércio era feita por escambo. O grande mercado em Tlatelolco operava diariamente e era controlado por uma classe mercantil especial, ou pochteca, que era especializada no comércio de longa distância de itens luxuosos tais como plumas de aves tropicais e cacau. Os mercados eram altamente regulamentados e estavam sob o controle de inspetores e juízes especiais. Apesar da existência e da importância dos mercados, esta não era uma economia de mercado da forma que nós conhecemos.
O estado controlava o uso e a distribuição de muitas commodities e servia para redistribuir as vastas levas de tributos recebidas dos povos subjugados. Os níveis de tributos eram determinados pela forma que os povos foram subjugados: se aceitaram o domínio asteca ou se tinham lutado contra esse domínio. Aqueles que haviam se rendido pagavam menos. Os tributos pagos eram vários: alimento, escravos, vítimas sacrificiais e uma ampla variedade de commodities. Por exemplo, mais de 120.000 mantas de tecido de algodão eram coletadas como tributo a cada ano e enviadas a Tenochtitlán. O estado asteca redistribuía estes bens. Após as conquistas, a nobreza era recompensada abundantemente, mas os plebeus recebiam bem menos. A redistribuição de muitos bens pelo estado interferia no funcionamento normal do mercado e criava uma peculiar economia mista controlada pelo estado.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Américas antes de Colombo - Parte 8: astecas - sociedade, religião e ideologia de conquista

O contrato social asteca
De acordo com as considerações astecas dessa história, uma transformação social e política também aconteceu. Acampichtli, o primeiro governante, criou uma nobreza, ou pipiltin, a partir das principais famílias por casamento com alguns nobres de Culhuacán que podiam traçar suas origens aos toltecas. Quando a guerra com Azcapotzalco estourou, os plebeus relutaram em lutar; mas a nobreza os encorajou e prometeu vitória. De acordo com a versão asteca oficial, os pipiltin prometeram obediência aos plebeus para sempre se eles perdessem, e os plebeus fizeram promessa similar se os nobres conseguissem a vitória. A conquista de Azcapotzalco assegurou a posição da nobreza. Além disso, o governante de Tenochtitlán emergiu desse processo não mais como um porta-voz de um conselho geral, mas como um governante supremo com amplos poderes. Os governantes seguintes expandiram o poder e as fronteiras do controle asteca. Moctezuma I (1440-1469) conquistou áreas em torno do platô central. Sob seu irmão Ahuitzotl (1486-1502), o império alcançou sua maior extensão – de costa a costa e com algumas áreas sujeitadas bem ao sul, embora o reino tarascano a noroeste permanecesse independente. Moctezuma II (1502-1520) consolidou a conquista do México central e, embora alguns poucos estados independentes permanecessem dentro do México central, a dominação asteca se estendia da fronteira tarascana até a região maia. Os povos subjugados eram forçados a pagar tributo, entregar terras e, às vezes, prestar serviço militar ao crescente Império Asteca.
Qualquer que seja a explanação oficial dos eventos, parece claro que a sociedade asteca foi transformada no processo de expansão e conquista. A partir de uma associação de clãs pouco rígida, os mexicas se tornaram uma sociedade estratificada sob a autoridade de um governante supremo de grande poder. Uma figura central nestas mudanças foi Tlacaelel, um homem que serviu como um tipo de primeiro-ministro e conselheiro sob três governantes de 1427 até a sua morte por volta de 1480. Sob sua direção, as histórias foram reescritas e aos mexicas foi dada uma autoimagem como um povo escolhido para servir os deuses. O sacrifício humano, há muito tempo parte da religião mesoamericana, foi consideravelmente expandido sob sua direção em um culto de enormes proporções no qual a classe militar desempenhava uma função central como fornecedores de cativos de guerra para serem usados como vítimas de sacrifício. Supostamente, à dedicação do grande templo durante o reinado de Ahuitzotl, mais de 10.000 vítimas foram sacrificadas. Também era uma política de Tlacaelel deixar alguns territórios inconquistados, de forma que periódicas guerras fossem organizadas nas quais ambos os lados poderiam obter cativos para sacrifício. Qualquer que fosse a motivação religiosa para esse culto, Tlacaelel e os governantes astecas os manipulavam como um recurso efetivo de terror político. Na época de Moctezuma II, o estado asteca era dominado por um rei que representava o poder civil e que servia como um representante dos deuses na Terra. O culto do sacrifício humano e da conquista estava unido ao poder político do governante e da nobreza.

Religião e a ideologia de conquista
A religião asteca incorporava muitas características que há muito faziam parte do sistema de crenças mesoamericano. A religião era uma força poderosa, unificadora e às vezes opressiva na qual pouca distinção era feita entre o mundo dos deuses e o mundo natural. As deidades tradicionais da Mesoamérica – os deuses da chuva, do fogo, da água, do milho, do céu e do sol, muitos dos quais eram cultuados desde a época de Teotihuacán – eram conhecidos e venerados entre os astecas.
Havia pelo menos 128 deidades importantes, mas o número de deuses, na prática, parecia incontável porque muitas vezes cada deidade tinha uma consorte de forma feminina. Isto se deve ao fato de que uma dualidade básica era reconhecida em todas as coisas. Além disso, os deuses podiam ter diferentes formas ou manifestações de certa forma como os avatares das deidades hindus. Frequentemente cada deus tinha pelo menos cinco aspectos, cada um associado com as direções cardeais e com o centro. Pensava-se que certos deuses como sendo os patronos de cidades específicas, grupos étnicos ou ocupações. Era um panteão abrangente sustentado por um ciclo de festivais anuais e um cerimonial altamente complexo que envolvia várias formas de banquetes e danças junto com penitência e sacrifício.
Esta confusa disposição de deuses pode ser organizada em três temas ou cultos principais. O primeiro era dos deuses da fertilidade e do ciclo agrícola, como Tlaloc, ou o deus da chuva (chamado de Chac pelos maias) e os deuses e deusas da água, do milho e da fertilidade. Xipe Totec, por exemplo, representava a ressurreição agrícola. Seu culto era horrível. As vítimas sacrificadas a ele era esfoladas, e um sacerdote então vestia a pele para representar o novo crescimento do milho. Um segundo tema centralizado nas deidades criadoras, os grandes deuses e deusas que trouxeram o universo à existência. A história de suas ações desempenhava um papel central na cosmografia asteca. Tonatiuh, o deus guerreiro do sul, e Tezcatlipoca, o deus do céu noturno, estavam entre os deuses mais poderosos e respeitados pelos povos do México central. A maior parte do pensamento abstrato e filosófico asteca era devotada ao tema da criação. Finalmente, o culto da guerra e do sacrifício construído sobre as tradições mesoamericanas preexistentes que tinha sido expandido desde a época tolteca, mas que, sob o estado militarista asteca, tornou-se o culto do estado. Huitzilopochtli, o patrono tribal asteca, tornou-se a figura central desse culto, mas ele também incluía Tezcatlipoca, Tonatiuh e outros deuses.
Os astecas reverenciavam as grandes deidades tradicionais – tais como Tlaloc e Quetzalcoatl, o antigo deus da civilização – tão sagradas para os toltecas, mas sua própria deidade tribal, Huitzilopochtli, tornou-se suprema. Os astecas o identificavam com o antigo deus do sol, e o viam como um guerreiro do céu do dia lutando para dar vida e calor ao mundo contra as forças da noite. A fim de realizar essa luta, o sol precisava de força – e assim como os deuses se sacrificavam pela humanidade, a nutrição que os deuses mais precisavam era o que havia de mais precioso: a vida humana em forma de corações e sangue. O grande templo de Tenochtitlán era dedicado a Huitzilopochtli e Tlaloc. A deidade tribal dos astecas e o antigo deus agrícola dos povos sedentários da Mesoamérica foram assim unidos.
Na verdade, enquanto o sacrifício humano há muito fazia parte da religião mesoamericana, ele se expandiu consideravelmente no período pós-clássico do militarismo. Os cultos guerreiros e as imagens militaristas de jaguares e águias devorando corações humanos eram característicos da arte tolteca. Os astecas simplesmente adotaram uma tendência existente e a levaram a uma escala sem precedentes. Os tipos e a frequência dos sacrifícios aumentaram, e um simbolismo amplo e religioso, que incluía canibalismo ritual, desenvolveu-se como parte do culto. Quanto do sacrifício asteca resultava de convicção religiosa e quanto era imposto como tática de terror e controle político pelos governantes e pela classe sacerdotal é uma questão ainda aberta a debate.
Sob a superfície desse politeísmo, também havia, no entanto, um senso de unidade espiritual. Nezhualcoyotl, o rei de Texcoco, compôs hinos ao “senhor das imediações”, uma força criativa invisível que apoiava todos os deuses. Apesar disso, sua concepção de um tipo de monoteísmo, muito semelhante ao do faraó Akhenaton no Egito, era muito abstrata e nunca conquistou grande popularidade.
Apesar dos aspectos sanguinários da religião asteca terem bastante atenção, pode-se também perceber que os astecas se interessavam com muitas das grandes questões religiosas e espirituais que preocupavam outras civilizações: Há vida depois da morte? Qual o significado da vida? O que significa viver uma vida boa? Os deuses realmente existem?
Nezhualcoyotl, cuja poesia sobreviveu na forma oral e foi escrita no século XVI, desejava saber sobre a vida após a morte:
         "As flores vão para a terra dos mortos?
         No além, estamos mortos ou ainda vivemos?
         Onde está a fonte de luz, visto que ela esconde o que dá a vida?"
Ele também queria saber sobre a existência dos deuses:
         "Você é real, você existe?
         Apenas você domina todas as coisas
         O doador da vida.
         Isso é verdade?
         Talvez, como dizem, não seja verdade."
A arte e a poesia religiosa astecas são repletas de imagens de flores, pássaros e de música – todos muito admirados pelos astecas – assim como de corações humanos e sangue – a “água preciosa” necessária para sustentar os deuses. É essa mistura de imagens que faz o simbolismo da religião asteca de tão difícil entendimento para os observadores modernos.
A religião asteca dependia de uma mitologia complexa que explicava o nascimento e a história dos deuses e suas relações com as pessoas e de um simbolismo religioso que infundia todos os aspectos da vida. Como já visto, o sistema de calendário mesoamericano era religioso em natureza, e muitas cerimônias coincidiam com pontos particulares no calendário cíclico. Além disso, os astecas também acreditavam em uma visão cíclica da história e que o mundo tinha sido destruído quatro vezes antes e que seria destruído novamente. Assim, havia certo fatalismo no pensamento asteca e uma premonição que, finalmente, os sacrifícios seriam insuficientes e os deuses trariam outra vez catástrofes. Caracteristicamente, no final de cada ciclo de 52 anos, todas as chamas e fogueiras no reino eram apagadas, e enquanto as pessoas esperavam apreensivamente, os sacerdotes tentavam acender uma nova fogueira na cavidade torácica de uma vítima sacrificial. Se os deuses aprovassem e o fogo acendesse, o mundo continuaria; o novo fogo era então levado por corredores com tochas para reacender todas as fogueiras no reino.