sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Como a agricultura quase destruiu a civilização humana antiga (How Farming Almost Destroyed Ancient Human Civilization) - por Annalee Newitz


Há cerca de 9.000 anos, os humanos haviam dominado a agricultura até o ponto onde a comida era abundante. Populações cresceram e as pessoas começaram a se fixar em grandes assentamentos com milhares de habitantes. E então, abruptamente, essas protocidades foram abandonadas por milênios. É um dos maiores mistérios dos primórdios da civilização humana.
O alvorecer da era da agricultura ocorre durante o "Neolítico", o período final da Idade da Pedra. Naquela época, há cerca de 12 mil anos, as pessoas já tinham desenvolvido ferramentas de pedra incrivelmente sofisticadas, armas e vasos de argila para cozinhar e armazenamento. E quando encontraram sementes que cresciam em plantas particularmente saborosas, levaram-nas durante suas caminhadas, plantando-as nos vales de rios em suas rotas, para que pudessem ter uma colheita dessas sementes no ano seguinte.
Quando estes cultivos informais ficaram um pouco maiores, começou a parecer menos vantajoso manter-se vagando quando havia tanta comida em um só lugar. Na região do Levante, ao longo do Mediterrâneo oriental, grupos nômades que outrora viviam da caça e coleta começaram a se estabelecer em pequenas aldeias em parte do ano.

Ascensão e queda das protocidades
À medida que essas pessoas aumentavam seus estoques de alimentos, as mulheres começaram a dar à luz a mais filhos. Grupos nômades de 20 ou 30 pessoas tornaram-se aldeias de 200. E algumas dessas aldeias, como Çatalhöyük na região central da atual Turquia, cresceram até alguns milhares de pessoas.
É difícil dizer o que, exatamente, Çatalhöyük era. Era uma cidade ou apenas algum tipo de aldeia bizarra, descomunal? Sabemos que perdurou por milênios, com milhares de pessoas ali vivendo continuamente a partir de cerca de 7500 AEC até 5700 AEC. Talvez possamos dizer que foi a coisa mais próxima de uma cidade no Neolítico, uma vez que muito mais pessoas viviam lá do que nas aldeias típicas próximas. Mas ela não tinha nenhuma das características que nós associamos às cidades grandiosas e com muralhas que surgiram milhares de anos mais tarde, no norte da África, na Ásia e no Oriente Médio.

   Imagem de Çatalhöyük por Dan Lewandowski. É importante lembrar que na vida real provavelmente muitos desses edifícios devem ter desabado e sido abandonados, usados como montes de entulhos. 

Não havia palácios, nem grandes zigurates ou pirâmides dedicadas aos deuses, e nenhum sinal de distinção de classes. Cada família tinha uma habitação pequena e ligeiramente retangular de um cômodo com uma lareira. Essas casas eram todas mais ou menos do mesmo tamanho. Não existiam ruas em Çatalhöyük – as casas eram erguidas uma ao lado da outra, similarmente a um favo de mel, e as pessoas caminhavam sobre os tetos das outras residências para chegar em casa, entrando através de portas em seus tetos. Embora houvesse arte, não havia escrita. E pouco havia no caminho que levasse ao trabalho especializado. Ao contrário da antiga Uruk ou de Mohenjo Daro, não havia manufaturas caseiras de adornos ou de produção de armas. As famílias viviam da caça, mas principalmente mantendo cultivos e pequenos rebanhos de animais como cabras nas colinas próximas.
Talvez Çatalhöyük não se parecesse muito com as cidades como as conhecemos, mas ela e outros grandes aglomerados eram as formas mais desenvolvidas de povoação em qualquer lugar do mundo naquela época. Eles foram os desenvolvimentos urbanos da sua época, abrigando grandes populações e promovendo o progresso tecnológico como cozinhar com produtos lácteos e fabricar cerâmica cozida (ambas eram grandes invenções de alta tecnologia no Neolítico).
Agora é que as coisas ficam estranhas. Em meados dos anos quinto milênio AEC, Çatalhöyük foi subitamente abandonada. A mesma coisa aconteceu com várias outras aldeias-cidades de grandes proporções no Levante. Suas populações se dispersaram, e as pessoas voltaram a viver nas pequenas aldeias por milhares de anos.
Ainda mais misterioso é o fato de haver um padrão semelhante - intensificação da agricultura, expansão da população, crescimento dos assentamentos e abandono - em outras partes do mundo. A agricultura chegou bem mais tarde à Europa Ocidental e à Inglaterra, de forma que este ciclo pode ser visto começando aproximadamente há 5.000 anos (em torno de 3000 AEC) em muitas regiões da Europa e na Inglaterra.
O que aconteceu?

O problema em se tornar sedentário
A vida sedentária pode ter significado mais alimentos e menos caminhadas, mas não foi fácil. Com uma grande população dependente de algumas poucas fontes locais de alimentos, os humanos tornaram-se vulneráveis como nunca foram enquanto nômades caçadores-coletores. Um período de clima desfavorável pode destruir toda a oferta de alimentos. E não é fácil se deslocar para outro lugar quando se tem uma população de 1.000 pessoas ou mais que estão acostumados à vida sedentária.
No Levante, uma mudança climática parece ser um culpado óbvio na desintegração das grandes aldeias-cidades. Çatalhöyük era cercada por rios perenes; hoje eles secaram.
Como o paleontólogo de Harvard Ofer Bar Josef defendeu na maior parte de sua carreira, parece certo que condições climáticas favoráveis permitiram que a agricultura florescesse no Levante. Mas no final do Neolítico, o clima se tornou mais frio e seco. Um lugar como Çatalhöyük já não podia mais se manter com as safras locais e a fome pode ter se tornado um grande problema. A dispersão em pequenas aldeias deu às pessoas uma chance de ter os confortos da vida sedentária sem a dependência de grandes safras para alimentar a todos.
Mas os arqueólogos que estudam as reduções populacionais na Europa sugerem outra explicação. O arqueólogo Stephen Shennan da University College London e sua equipe descobriram que não houve correlação entre as mudanças climáticas e a redução populacional na Europa. Eles sugerem que o que parece ser o abandono de grandes aglomerados populacionais pode na verdade ser reduções populacionais devido a doenças. Uma das principais desvantagens para a vida em um grande assentamento é que as doenças se espalham como fogo - especialmente supondo-se que as condições sanitárias eram mínimas. Na maioria das vezes, as pessoas despejavam seu lixo ao lado de suas casas.
Ainda assim, várias cidades sofreram com pragas e fome nos últimos milhares de anos – recuperando-se em seguida. Por que as pessoas abandonam os projetos das protocidades das grandes povoações neolíticas, sem nunca reconstruí-los novamente?
A agricultura é frequentemente chamada de "revolução neolítica". Então, o antropólogo Ian Kuijt da Universidade de Notre Dame chama esses colapsos de "fracasso da experiência neolítica". Ele descreve a expansão e abandono de uma mega-aldeia chamada Basta, localizada no que hoje é a Jordânia. Como Çatalhöyük, Basta se tornou maior do que outras aldeias ao seu redor. Para lidar com o crescimento populacional, as pessoas do Basta inventaram a arquitetura de dois andares, e começaram a subdividir seus espaços de convivência em cômodos cada vez menores. Muitas casas continham áreas especializadas para a convivência e para o armazenamento de alimentos.



Mas Kuijt não acredita que Basta foi abandonada porque sua população se tornou maior que seus recursos podiam sustentar. Em vez disso, sua população se tornou maior que os seus sistemas de crenças podiam suportar.

Velhas crenças e novas tecnologias
O problema é que as pessoas nas protocidades neolíticas herdaram um sistema de organização social e espiritualidade de seus ancestrais nômades. Como a vida nômade requer que todos no grupo compartilhem recursos para sobreviver, esses grupos desenvolveram rituais e costumes que reforçavam uma estrutura social bastante igualitária. Certamente houve famílias que tinham posições mais proeminentes em um grupo de caçadores-coletores ou numa pequena aldeia, mas se elas começassem a acumular recursos demais, isso seria ruim para todo o grupo. Então as pessoas desencorajariam fortemente umas às outras de exibições ostentosas de diferenças sociais.
Este conjunto de crenças pode ser visto refletido no ambiente construído de Çatalhöyük, onde todas as casas são mais ou menos do mesmo tamanho. Algumas casas têm algumas coisas a mais - mais peças de arte ou mais objetos rituais - mas como dito anteriormente, ninguém estava vivendo no equivalente Neolítico de uma mansão.
Tudo isso funciona muito bem em uma comunidade pequena, onde você conhece todos os seus vizinhos e apenas compartilha com pessoas cujas vidas são ligadas à sua (mesmo se você não gosta muito delas). Mas quando você tem milhares de pessoas vivendo juntas, é mais difícil ter uma estrutura social planificada. As pessoas precisam de representantes locais para representá-las; talvez até mesmo de um sistema de escrita para manter o controle de todos e do que possuem. Algumas pessoas começam a fazer tarefas especializadas, dando início à diferenciação social.
Mas a ideologia dessas pessoas nas protocidades neolíticas, Kuijt especula, deve ter tratado qualquer tipo de diferenciação social como um tabu. Assim que alguém conseguiu poder suficiente para ser um representante ou um protopolítico, outras pessoas tê-lo-iam afrontado. Kuijt acredita que importantes conflitos podem ter surgido desta tensão entre a crença na organização social planificada e a necessidade de se criar hierarquias sociais nas sociedades maiores. É uma hipótese intrigante, especialmente quando se considera que quando as cidades ressurgiram no quarto milênio AEC, elas tinham hierarquias sociais rígidas com reis, xamãs e escravos. Além disso, elas tinham a escrita, que então é usada fundamentalmente para listar onde cada pessoa vive e quais as suas posses ou bens.

  Reconstrução artística da antiga cidade de Uruk, com suas estruturas monumentais tornando a diferenciação social visível em sua arquitetura.  

É possível que o modelo de vida das protocidades não fosse sustentável porque era apoiado em sistemas de crenças que só poderiam existir em pequenas comunidades onde todos compartilhavam os recursos. Isso explicaria porque as pessoas abandonaram esses sítios, passando a viver em pequenas aldeias que nunca excediam cerca de 200 pessoas.
De certa forma, a agricultura foi uma tecnologia que chegou antes que a civilização humana estivesse pronta. Ela deu aos seres humanos os meios que possibilitaram grandes assentamentos e protocidades. Mas a humanidade havia vivido dezenas de milhares de anos como nômades antes disso, e ainda não estava pronta para abandonar suas antigas crenças de que nenhuma família deveria acumular mais do que seus vizinhos. Como resultado, nosso mais antigo experimento com o urbanismo terminou em fracasso. Quando as coisas ficaram difíceis, com colheitas insuficientes e doenças, os humanos preferiram abandonar as suas criações urbanas nascentes porque ainda não haviam desenvolvido uma estrutura social que permitisse lidar com as dificuldades da vida na cidade.

Foi por pouco. O mundo urbano como conhecemos hoje poderia não ter existido. Se a humanidade não tivesse chegado a um acordo com a revolução agrícola, é possível que os humanos nunca tivessem sido capazes de sustentar comunidades maiores do que uma aldeia.